Conta a lenda que, no silêncio após a formação em testudo, a lâmina curta e afiada do pugio brilhava como uma promessa contida: uma ferramenta, uma arma, e ao mesmo tempo um emblema de pertença à legião.

Uma arma pequena com grande história
O pugio romano não foi uma ocorrência repentina, mas o resultado de séculos de contactos, batalhas e artesanato. Proveniente da tradição ibérica e adaptado pela maquinaria militar romana, tornou-se algo mais do que um simples punhal: um companheiro diário do legionário e, em ocasiões, uma insígnia de estatuto dentro do acampamento.
Neste artigo, irás explorar a sua origem, evolução técnica, uso em combate e significado simbólico, além de ver como foi representado e transportado na milícia romana. Acompanharei a narração com peças visuais históricas para que descubras cada detalhe do pugio.
O pugio romano: cronologia e evolução
O pugio passou de um punhal ibérico a um elemento característico do legionário romano, com funções tanto práticas quanto simbólicas ao longo de vários séculos.
| Período / Data | Descrição breve |
|---|---|
| Século II a.C. | Origem ligada aos punhais bidiscoidais ibéricos; peças de alta manufatura e símbolo de condição social, além de troféus de guerra. |
| Finais do Século II a.C. | Aparecem em contextos romanos como butim ou por intercâmbio cultural, embora então não tivessem grande protagonismo militar (ignorados por Políbio). |
| Século I a.C. (processo de hibridização) | Os armeiros romanos fundem influências do punhal bidiscoidal e do punhal de “gumes curvos” da Meseta, dando lugar ao pugio legionário. |
| 44 a.C. – 42 a.C. | Evidências concretas de uso romano: moedas vinculadas ao assassinato de Júlio César (44 a.C.) e a estela funerária do centurião Minúcio (42 a.C.). |
| Reformas militares (finais do S. II a.C. – S. I a.C.) | A profissionalização do exército (reformas Marianas) e o predomínio de líderes como Júlio César favorecem a sua difusão entre as tropas. |
| Época de Augusto e Século I d.C. | Máximo auge: o pugio generaliza-se entre legionários e auxiliares. Design típico: lâmina pistiliforme com nervura, empunhadura com espiga e talas em T, pomo com discos, bainhas metálicas e decoração elaborada. Evolui a forma de o transportar (horizontal para vertical). |
| Século I a.C. – Século II d.C. | Debate sobre a sua função: ferramenta diária e arma secundária em combate. Predomina a interpretação de utilidade militar combinada com forte caráter simbólico e de estatuto. |
| Século II d.C. | Inicia-se um declínio no seu uso por motivos práticos e de custo; não obstante, continua documentado arqueologicamente e existem achados contínuos. |
| Finais do Século II – Século III d.C. | Repunte em achados em alguns contextos. Os exemplares do séc. III mantêm traços básicos, com variações de tamanho possivelmente regionais. |
| Século IV d.C. | Desaparecimento definitivo do pugio na panóplia romana; a chegada de novas armas (francisca, sax) e mudanças nas unidades forasteiras explicam a sua substituição. |
Da adaga celtibérica ao pugio: a hibridização que mudou a panóplia
Os armeiros romanos estavam atentos ao que era útil. Os punhais bidiscoidais e os gumes curvos da Meseta não eram apenas belas peças: eram soluções comprovadas em combate. O processo que conduziu ao pugio não foi copiar, mas sim fundir.
Da adaga celtibérica herdou o punho anatómico e a filosofia do cabo bidiscoidal; dos punhais da Meseta tomou a robustez e a possibilidade de lâminas mais estreitas com nervura central. O resultado: uma adaga curta, equilibrada e capaz de penetrar armaduras leves.
Design: como era um pugio
Falar do design do pugio é falar de intenção: uma lâmina que procura penetrar, uma empunhadura que segura e uma bainha que mostra. Não é por acaso que a sua forma pistiliforme era ideal para concentrar o golpe na ponta.
A lâmina
O típico era uma lâmina de entre 18 e 28 cm, larga na base e com uma ou mais nervuras centrais que serviam de coluna. Esta configuração dava-lhe rigidez suficiente para apunhalar com eficácia e resistência para não dobrar no impacto.
A empunhadura
A empunhadura era montada sobre uma espiga; duas talas fixadas por rebites formavam um cabo funcional. Um elemento recorrente era o pomo com disco ou glóbulo, pensado para assentar a mão do portador e evitar deslizamentos.
A bainha e a suspensão
As bainhas eram um campo de expressão. Desde designs simples em couro até coberturas metálicas com damasquinados, a funda do pugio podia exibir decoração. A suspensão por meio de argolas laterais permitia pendurá-lo do cingulum em posição vertical ou, em etapas anteriores, horizontalmente.
Como o legionário o transportava
A forma de transportar o pugio era prática e ritualizada: observava-se o costume quase universal de distribuir o equipamento por ambos os lados da anca para equilibrar pesos. Assim, o gladius de um lado e o pugio do outro formavam um equilíbrio visual e funcional.
Em muitos testemunhos iconográficos, aparece pendurado no cingulum, por vezes com um segundo cinto específico para a adaga; outras vezes, ambas as armas partilhavam um único cinto com diversos engates.
Funções no campo e fora dele
Embora muitas vezes se tenha dito que o pugio era uma arma de último recurso, a evidência sugere um uso multifuncional: desde cortar em tarefas diárias até intervenções em combate cerrado ou emboscadas onde uma adaga curta é letal.
A sua capacidade de perfurar, graças à nervura central, permitiu que fosse eficaz contra cotas de malha e roupas reforçadas. Não obstante, o seu tamanho e design tornavam-no ideal para lutar em espaços reduzidos e para ações de surpresa.
Uso prático e símbolo
Além da sua função como ferramenta, o pugio teve um forte componente simbólico. As bainhas decoradas e os detalhes em metal podiam indicar patente ou pertença a uma unidade concreta. Era um objeto pessoal com um marcado valor identitário.
Variantes e tipologias
Ao longo do tempo, observam-se distintos tipos de pugio: desde exemplares curtos e contundentes até outros mais longos e estilizados. Algumas variações obedecem a mudanças técnicas, outras a modas locais ou à função específica que deviam cumprir.
- Pugio hispano-romano: evidente influência ibérica no cabo e na decoração.
- Pugio imperial: com bainhas elaboradas e presença em contextos de maior prestígio.
- Pugio utilitário: peças mais simples, frequentes entre tropas auxiliares ou em contextos não prestigiados.
Manufatura e materiais
A lâmina era forjada em ferro ou aço, dependendo da técnica disponível; a nervura central podia ser obtida por laminagem ou forjamento. As talas da empunhadura eram de madeira, osso ou metais, e as bainhas combinavam couro, madeira e revestimentos metálicos com ornamentações.
Os artesãos que produziam pugios deviam equilibrar custo, resistência e estética: uma bainha rica em prata ou com damasquinado implicava maior escrutínio social e recursos do proprietário.
Iconografia e representação
Em estelas, relevos e moedas, o pugio aparece com certa regularidade no período republicano tardio e nos séculos iniciais do Império. Aparecer numa estela funerária era testemunho do papel central do pugio na identidade militar.
A representação do pugio também nos permite entender a evolução da sua suspensão: por vezes o vemos horizontalmente, outras verticalmente, no lado oposto ao gladius, o que reflete mudanças práticas no transporte.
O pugio nas mãos de personagens históricas
As fontes iconográficas e alguns testemunhos materiais situam o pugio em cenas simbólicas: desde inscrições de oficiais até moedas que o incorporam como símbolo em momentos-chave, como o assassinato de Júlio César.
Embora seja impossível atribuir atos concretos sempre, a presença do pugio em moedas ou estelas reforça a ideia da sua valorização para além do simples uso prático.
Manutenção e cuidado (práticas antigas)
Os legionários conheciam a importância da manutenção: limar a lâmina, untar a bainha e reparar o couro eram tarefas habituais. Uma adaga cuidada não só era mais fiável, como também transmitia uma imagem de disciplina.
Em campanhas longas, a resistência da nervura e a integridade da espiga eram cruciais; por isso, preferiam-se designs que permitissem reparações rápidas no acampamento.
O legado do pugio e o seu desaparecimento
Após o seu apogeu nos séculos I a.C. e I d.C., o pugio começou a perder presença na panóplia romana à medida que novas táticas e armas eram introduzidas. O século II d.C. marcou um declínio paulatino e, para o século IV d.C., a adaga tinha desaparecido como elemento militar padrão.
No entanto, a sua pegada perdura: peças arqueológicas e réplicas modernas lembram-nos que o pugio foi algo mais do que ferro e couro; foi um componente de identidade, prática e estética militar.
Estudar o pugio revela-nos como Roma assimilou técnicas e objetos forâneos, transformando-os em ferramentas adaptadas ao seu exército profissional. É uma lição de hibridização tecnológica e cultural: o que chegava ao acampamento não era adotado tal qual, era adaptado, melhorado e integrado.
Além disso, compreender o seu design e função ajuda os recriadores, artesãos e aficionados à história a interpretar com maior fidelidade a vida material do legionário.
Leitura prática para o entusiasta
- Observa a empunhadura: o nó central e o pomo revelam intenção ergonómica.
- Repara na nervura: mais de uma indica busca de rigidez para perfurar.
- Vê a bainha: a decoração pode sugerir patente ou proveniência.
Estas simples observações ajudar-te-ão a diferenciar exemplares originais, réplicas fiéis e variações estilísticas.
Hoje como ontem, o pugio continua a despertar fascínio. Não é apenas uma adaga: é um fragmento tangível de como os romanos pensavam a guerra, o estatuto e a aparência. A sua silhueta, pequena mas carregada de significado, convida-nos a olhar para além do aço e a entender a vida daqueles que o transportaram.















